em breve, meu livrinho faz um ano e digo a vocês que ainda estou às voltas para entender algo sobre. antes de ontem, abaixo do fantasma da cajazeira sagrada da casa das minas, um conhecido disse ter lido e gostado. lembrei das inúmeras orações que ali fiz e de toda a palha queimada para aquele lugar aparecer em insuficientes três poemas do pequeno caderno - em todos personificado na sua última chefe, deni.
revendo as fotos das vodunsis, digo a sandro que a memória já não é mais a mesma e ele sugere que eu anote as coisas que tenho pensado sobre são joão. trazer coisa e outra pra cá? custo de promessa é coisa grande. regrinhas: 1) a não ser de modo muito rasteiro, aqui as coisas vão sem escorço histórico; 2) é exercício especulativo, provavelmente errarei bastante sobre bois.
se formos falar de sábado, estávamos primeiro na liberdade, um quilombo urbano (assim certificado pela fundação palmares) que agora faz 107 anos. aniversário do bairro, rua lotada e uma linda barraca que encontramos pelo caminho.
pouco depois, chega a floresta. é de se prestar atenção como a floresta, mesmo sem neon, é um boi que brilha à noite. qualidade do bordado, qualidade de caretas, animais à vista. é um detalhe de muita coerência, pensando no seu sentido muito intenso de cura, um investimento grande nesse aspecto. boi do bairro, boi de estar em casa, paz do brasil reluzindo na couraça que não muda de nome. me restaram algumas dúvidas sobre coreografias, a ver.
em seguida, o boi de leonardo se apresentou sem paramentos, o que amo: ensaio é mais brincar. pessoal da dança: criançada geral. pulando, se batendo, ameaçando, rindo. boi de muita investida, improviso, enquanto se mantém uma parte musical muito afinada. o compromisso de resistência do boi de leonardo nasce dessa simultaneidade entre a brincadeira espontânea e a guerra para ser um melhor brincante, com mais força e poder de manifestação. aliás, um dos melhores discos de boi dos últimos anos, no meu modesto parecer.
uma mostra aqui: toada reunida n.1
mais tarde, entra a maioba aka o meu boi. não há índios, caboclos, não há sequer boi em si - tão somente instrumentos. é como se dissesse: boi é onde se vai e canta até o chão tremer. é gente demais, o espaço é pequeno. é muita, muita gente, não dá pra se mover. o chão realmente treme. as letras desse ano na maioba são praticamente todas sobre paixão e um passeio mais detido pela militância indígena. nos últimos anos, o índio guerreiro flechador tem sido o personagem principal de grande parte das toadas, igualmente nas mãos de marcos, junior e darlan. muitas são de guerra, narram batalhas espirituais para a escrita e para as brincadas.
essa é do ano passado, já com a entidade presente: indio guerreiro flechador 2023
minha maior questão esse ano até o momento: muitos pandeirões carregam o índio guerreiro flechador, o que é de se esperar, mas de repente vejo gravadas inúmeras qualidades de pambu nzila, tantas como antes jamais. estive com a maioba também no domingo anterior e, bem, lá novamente estavam. falarei mais sobre esse dia, também importante. a ver.
voltemos à casa das minas.
chegamos no ensaio da pindoba, um boi que me intriga há muito pela coesão e força no toque, contrastados por um bailado flutuante. revisito agora os vídeos que fiz e me pego impressionado com a fluidez que invade até a descida dos pandeirões, uma coreografia para o descanso que parece demonstrar a organização de todo o resto. o chão é arenoso, há muita gente descalça, e fumaça de fogueira e cigarro invadindo o juízo. o pessoal não está paramentado, e de novo amo: ensaio é mais brincar.
um elemento importante no bumba meu boi é demonstrar a paixão, coisa que a pindoba faz como poucos. enquanto flutuam, índias e caboclos cantam com toda a força que há, gritam. o boi também flutua, mas é bem bravo, ataca gente. no couro, de um lado, uma santa luzia bordada expande a vista dos brincantes e vigia os olhos de quem assiste. os pandeirões praticamente não têm imagens, apenas em alguns está gravado o nome do grupo e nada mais.
adalton e berg, dois de seus cantadores, são grandes especialistas em escrever sobre o apaixonamento. depois posso falar mais dos trabalhos anteriores de berg, pelos quais tenho especial admiração. por enquanto, posso dizer que uma marca das composições de ambos é uma espécie de ambiguidade entre um aspecto devocional e a alta carga corpórea de suas descrições - em resumo, eros. você, o boi, o contrário, a noite e o amor se movimentam nessas toadas, formam triangulações e propositalmente confundem os temas, tornam tudo movediço.
na madrugada, os dois aspectos se encontram: adalton emenda toadas sobre como a paixão requer disciplina. as finalizações são secas. os brincantes são exatos. as letras ficam mais diretas. disciplina para melhor brincar. disciplina para melhor amar.
enquanto não decifro o meu livro e ensaio a escrita do próximo e ainda alguns bois, aprendo coisas assim. a trupiada é massacrante, obriga o pensamento.
Amei as anotações, lembrei de algumas coisas: 1) quando entrevistei Nadir, ela falou do investimento que fazia para a manutenção da qualidade dos bordados, trazendo mestres do interior para fazer oficinas com os mais jovens da comunidade; 2) tenho a impressão que Maioba teu boi é o batalhão mais visceral 3) nunca tinha prestado atenção no apelo à disciplina da Pindoba, sendo a disciplina uma das facetas de Exu -- que desorganiza para organizar. Uma vez conversando com um amigo fotógrafo, ele falou que alguns bois parecem carregar características de certos orixás (Santa Fé/Oxossi, Maracanã/Xangô), mas não sei se essa é uma correlação aleatória ou se pode revelar algo da origem espiritual desses bois, pensando aqui que muitos nascem em barracões de terreiro etc.